Cidades
Festejo do Divino Espírito Santo move fé, religiosidade, solidariedade e cultura
Em meio a abraços e cumprimentos da população nativitana, Gilson Pereira Lacerda caminhou orgulhoso, na saída da Igreja do Espírito Santo, localizada em Natividade. Ele foi sorteado como o imperador da Festa do Divino Espírito Santo de 2024, uma honra que esperou por uma década. A escolha se deu na Missa Solene de Pentecostes, rito que sucedeu a coroação de Henrique Barreira Parente, imperador do festejo de 2023.
Segundo a crença local, os imperadores, ao serem sorteados, são escolhidos pelo próprio Divino. Emocionado, Gilson abraçou os conterrâneos que o saudaram com alegria, enquanto agradeceu as felicitações e enxugou as lágrimas, dizendo em voz alta o quão bom é ser escolhido como imperador. Esse momento traduz as festividades do Divino Espírito Santo, no município de Natividade, como um momento que reúne fé, alegria e solidariedade.
“Essas pessoas que trabalharam aqui são todas voluntárias. É uma festa em que os bolos são doados, as bandeirolas, as ornamentações são todas feitas por pessoas que não cobram por esse serviço. Esse trabalho voluntário é por causa da fé”, afirmou Adília Camelo Rocha que, já na melhor idade, destacou participar das festividades desde a infância, envolvendo-se da arrumação a concretização da festa.
Caminhar pelas ruas de Natividade em época de festejo, é observar a população que se engaja, em meio aos belos casarões em arquitetura colonial, na organização e em cada passo para uma das manifestações culturais mais importantes do Estado. Nas ruas, há pessoas pendurando bandeirolas e organizando ornamentos. Dentro das casas, há pessoas confeccionando objetos de decoração e cozinhando alimentos que serão servidos gratuitamente para todos que participarem das festividades.
“Eu ajudo a fazer bolos, a enfeitar, fazer bandeirolas. Também faço o serviço de levar e buscar as cozinheiras, às vezes até fora da cidade, no povoado do Bonfim. Faço de tudo um pouco. O sentimento de participar do festejo é de gratidão, alegria. É uma festa muito bonita, uma festa tradicional e é muito prazeroso, porque nesse momento você interage, troca ideias, sorri. Participar dessa festa é uma gratidão”, explicou Vanusa Rodrigues Camelo, outra nativitana que contou com orgulho e os olhos brilhando, como é participar do festejo desde a infância.
Sagrado e profano
A vigília pentecostal se inicia com a Missa do Capitão do Mastro, que é parte integrante da programação do festejo. Ao fim do rito, os participantes saem em procissão até a rua em que a Festa Capitão do Mastro, que no ano de 2023 foi representada por Justino Camelo, ocorreu. No local, elas recebem licores, comidas e doces feitos exclusivamente para a festividade. É também nesse momento que a população, após participar dos ritos tradicionais, dança e canta ao som de música ao vivo, já que, apesar de ser uma festividade com bases religiosas, o Festejo do Divino Espírito Santo reúne não só a fé, mas outros aspectos da cultura tocantinense: culinária, bebidas típicas, dança e música.
Antes que a banda ao vivo comece a tocar o forró que animará os participantes durante toda a noite, os visitantes e nativitanos escutam, mesmo de longe, os batuques e a cantoria dos grupos de suça Mãe Ana e Tia Benvinda, fundados, respectivamente, nos anos 2000 e 2017. Crianças, adultos e idosos participam alegremente e animam os foliões e visitantes, que têm dificuldade para resistir ao ritmo da dança, com raízes históricas na cultura africana. Dentre os instrumentos utilizados na suça estão o fuxico, o roncador e o caxambu, produzidos em materiais como a madeira, o couro e a cerâmica.
“É uma alegria imensa estar aqui, porque a minha luta foi árdua para conseguir ver isso resgatado, uma dança que estava acabando. Para mim, o lema da festa é evangelizar e matar a fome. Dê de comer a quem tem fome e dê de beber a quem tem sede”, declarou Felisberta Pereira, conhecida como Dona Feliz, coordenadora do grupo Mãe Ana.
Além de trazer o sagrado e o profano em uma única festa, o Festejo do Divino Espírito Santo, ainda que seja uma festividade majoritariamente católica, é também uma prova da mistura de crenças distintas, do sincretismo religioso que habita a cidade. Fundada em 1734 como o agrupamento Arraial de São Luiz, Natividade completa, neste dia 1º de junho, 289 anos.
Um dos principais atrativos de Natividade, a Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, é uma edificação inacabada, levantada por escravos que trabalhavam na região no período em que a exploração do ouro acontecia com intensidade, e foram alforriados com a abolição da escravatura, motivo pelo qual a igreja nunca foi terminada. A presença da herança cultural africana na cidade, com população majoritariamente católica, é forte, o que traz a mistura de crenças e faz dela algo tão intrínseco na cultura local.
A Festa
Características próprias e singulares foram somadas às Festas do Divino Espírito Santo, que chegaram ao país através dos colonizadores lusitanos, possivelmente começando na região com as entradas e bandeiras, no período de exploração do ouro. Os festejos se desenrolam no Estado entre os meses de janeiro e junho, dependendo da cidade. Dentre as localidades que organizam a festa estão os municípios de Almas, Silvanópolis, Santa Rosa, Paranã, Peixe, Chapada de Natividade, Conceição do Tocantins, Porto Nacional, Araguatins, Araguacema, Araguaçu, Monte do Carmo e Natividade, sendo este último uma das maiores festas religiosas do Tocantins.
A festividade segue o calendário cristão, e a sua preparação se inicia a partir do sorteio que ocorre um ano antes, na Missa de Coroação do Imperador. Antes da concretização da festa, a preparação inclui diversas fases, dentre as quais estão o Giro de 40 dias, que consiste na atividade dos foliões de percorrer fazendas, povoados e cidades vizinhas, levando música e fé, enquanto fazem a arrecadação de doações e mantimentos para a realização da festa.
Outro momento importante é aquele conhecido como Esmola Geral, quando a população nativitana sai pelas ruas da cidade buscando a contribuição dos fiéis para a realização do festejo. Junto à procissão são carregadas as bandeiras dos devotos e a Bandeira da Misericórdia, maior que as demais.
Em 2023, o imperador coroado foi Henrique Barreira Parente, que conta a importância de ocupar o posto, uma honra recebida por sua família outras três vezes. “Para mim é muito gratificante ser imperador do Divino. Primeiramente pela fé que tenho pelo Divino Espírito Santo e depois pela cultura e tradição que nós temos. Meu avô foi imperador, meu pai foi imperador por duas vezes e eu também fui agraciado de ser imperador.”
Henrique explicou que o festejo é um momento tradicional, uma festa do povo, que envolve a população. “A comunidade doa de uma vaca até uma caixa de fósforo, dúzia de ovos, caixa de refrigerante. Cada um faz a sua doação como pode. Eu acho bonita essa cultura, essa tradição que envolve todas as classes sociais, desde o mais humilde ao mais graduado. Todos se envolvem na Festa do Divino e se tornam um só”, finalizou.
Natividade
Considerado um dos principais palcos para a Folia do Divino Espírito Santo, o município de Natividade está situado na região sudeste do Tocantins, a 218 km de Palmas. Reconhecida como berço cultural do Tocantins, Natividade é o núcleo urbano mais antigo do Estado, tendo sido tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em 1987, em três zonas de uso específicas: Zona de Proteção Histórica, Zona de Proteção Ambiental e Zona de Expansão.
Seu conjunto arquitetônico é formado pelas ruas repletas de casarões, em cores distintas, e pelas igrejas que compõem a cidade. Além disso, o município, que fica na região das Serras Gerais – uma das maiores cadeias de serras do Brasil – possui cachoeiras e piscinas naturais.
O período em que o Festejo do Divino Espírito Santo ocorre ressalta a união e a solidariedade da população, que se move pela fé, tornando a festa um movimento cultural pulsante. Mas a própria cidade é um elemento essencial nessa pulsação, elemento este que adiciona seus encantos às festividades. Enquanto os fiéis percorrem as ruas, o eixo histórico-cultural que envolve o município confirma a importância do mantenimento das tradições, da cultura popular e da identidade não só da cidade, mas do Tocantins.
Foto: Kadu Souza/Governo do Tocantins
Por: Maria Eduarda Ferraz
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